O fim do amor romântico e a era do relacionamento aberto
"O amor e o sexo estão entre as principais causas de um grande sofrimento das pessoas, tirando miséria, tirando doença. As pessoas gastam um tempo enorme de suas vidas sofrendo por amor". Assim a psicanalista Regina Navarro Lins define o atual momento amoroso da sociedade ocidental. Autora do best-seller "A cama na varanda" e de mais sete livros que abordam o amor, ela se dedica há cerca de 15 anos ao debate das questões amorosas. Nesta entrevista ela fala sobre o fim do amor romântico, o início do poliamor e o futuro das relações amorosas modernas.
O ideal do amor romântico, de uma pessoa completar ao outro e fazê-lo totalmente feliz, chegou ao fim?
R: Eu acho que o amor romântico dá sinais de que está saindo de cena. A mudança das mentalidades é lenta e gradual, não acontece de uma hora para a outra. Então, o amor romântico ainda existe, os ideais dele começaram no século XII e ganharam força no século XIX. É um amor idealizado, é um amor que você acredita que vai se completar na relação com outra pessoa, é um tipo de amor que prega a fusão entre os amantes, e que existe apenas no Ocidente. O ocidental ama estar amando, se apaixona pela paixão, aquela exaltação. E o amor romântico é calcado na idealização do outro. Você inventa uma pessoa, você conhece uma pessoa e atribui a ela características de personalidade que você gostaria de ter ou gostaria que ela tivesse, depois, na vida cotidiana, você fica reclamando da pessoa o tempo todo, querendo que ela se transforme para se encaixar naquilo que você idealizou.
No amor romântico você não se relaciona com a pessoa real, mas mas com a pessoa que você criou em sua mente"
O amor é uma construção social, em cada época as pessoas amam de um jeito. No momento, o amor romântico está saindo de cena porque nós estamos vivendo uma época em que se observa a busca da individualidade, algo que eu não acho negativo, é até positivo, pois a grande viagem do ser humano, hoje, é pra dentro de si mesmo, cada um quer saber das suas possibilidades, cada um quer desenvolver seu potencial. Por isso aquela ética do sacrifício pelo outro, que você tem que ceder, tem que se sacrificar pelo outro, pregada pelo amor romântico, é incompatível com o atual estágio da sociedade. Então, me parece que um novo tipo de amor está começando a surgir e o amor romântico está saindo de cena. O mais importante dessa saída de cena dele é que ele está levando consigo a exigência de exclusividade, porque ele está batendo de frente com os anseios contemporâneos, a busca da individualidade, pois o amor romântico prega o oposto, ele prega a fusão dos amantes, a exclusividade total, ele prega que um amante só tem olhos para o outro, nada no mundo interessa além da pessoa amada, nada tem sentido se o amado não estiver junto. O amor romântico traz a expectativa de que quem ama não deseja mais ninguém, quem ama não tem tesão por mais ninguém, uma série de equívocos nos quais as pessoas passaram a acreditar há bastante tempo, porque nós somos regidos por esse mito do amor romântico, e você vê isso nas novelas, no cinema, na música e em tudo mais. Felizmente, o amor romântico dá sinais de sua saída de cena e digo felizmente porque nele você não se relaciona com a pessoa real, você se relaciona com a pessoa que você criou.
O ciúme não existiria no poliamor, na medida em que você não será trocado por outro"
O que caracteriza o poliamor, esse novo amor que substituirá o romântico e que é sempre citado nos trabalhos da senhora?
R: Certa vez uma grande revista semanal me entrevistou sobre o poliamor, eu falei tudo que sabia, mas resolvi me aprofundar no assunto. O poliamor coincide com tudo isso que eu falo, eu observo que daqui há algum tempo menos pessoas vão querer se fechar em uma relação a dois, mais pessoas vão preferir ter relações soltas, com mais de uma pessoa ao mesmo tempo e isso coincide com esse fim do amor romântico. Enquanto o amor romântico é ocidental, o poliamor existe no mundo todo, por isso me dediquei a pesquisá-lo e encontrei muitas coisas, houve um congresso sobre poliamor na Alemanha, teve uma passeata em Londres, na Internet há mais de um milhão de citações sobre o poliamor em todas as línguas. Por isso, eu acho que o poliamor é uma tendência, daqui há 20, 30 anos, não é possível precisar quanto tempo, mas é muito possível que muito mais gente participe do poliamor, que consiste em amar várias pessoas e ser amado por várias pessoas. Na verdade, isso já acontece, mas as pessoas sofrem, porque não é aceito. Então, elas sofrem, elas são obrigadas a escolher, muita gente tem um momento da vida no qual está amando duas pessoas, mas é tomado pela culpa, é obrigado a decidir, gerando grande sofrimento. Em algum tempo isso se tornará mais fácil.
Viver em um relacionamento aberto é sinônimo de poliamor?
R: Não necessariamente. No relacionamento aberto, como é conhecido, cada um sai com outros parceiros do seu lado, pois toda relação tem códigos, tem pactos que você faz, mesmo inconscientemente. Então geralmente um relacionamento aberto, que as pessoas definem como relacionamento aberto, é cada um poder sair, ter sua vida, independentemente do outro, e você pode comentar com o outro ou não sobre outras pessoas com as quais se relacionou, sendo que a maioria das pessoas não comenta, pois hoje ainda geraria sofrimento saber. O poliamor vai além, ele pretende que seja natural para todo mundo amar e ser amado por outros que não sejam o companheiro, sem precisar de segredo nenhum, a idéia é que isso seja algo tranquilo, seu parceiro ficaria contente por você ser amado por outra pessoa. Os poliamoristas alegam que o cíume não existiria no poliamor na medida em que você não será trocado por outro. Já faz algum tempo que percebemos que o ciúme existe por conta do medo da perda, então, se eu vou a uma festa e meu marido se interessa por uma outra pessoa, imediatamente o companheiro fica com medo de que ele prefira a essa outra pessoa do que a mim. O ciúme vem do medo de não ser escolhido. Os poliamoristas alegam que isso não aconteceria no poliamor porque você não precisaria abrir mão de ninguém para estar com outra pessoa. Por esses motivos eu acredito que a relação aberta como é conhecida se diferencia do poliamor, porque o poliamor é muito mais aberto e tranquilo.
Recorte do cartaz de Três formas de amar (1994)
Às vezes parece que avançamos na compreensão do amor, mas não na prática amorosa. A senhora acredita que estamos atrasados na vivência do amor?
R: Não! Eu acho o seguinte: nós vivemos uma repressão muito grande durante milênios, durante cinco mil anos o patriarcado se instalou, então, as pessoas eram muito reprimidas, o cristianismo criou um horror ao sexo, um horror ao prazer, tudo isso aliado à uma moral muito rígida, em que todos tinham que se enquadrar em modelos, quem não se enquadrasse em um modelo imposto era discriminado. As coisas começaram a mudar na década de 1960 com a pílula anticoncepcional, que foi um divisor de águas: a mulher pode escolher se teria filhos, o sexo se dissociou da procriação, o movimento gay pode surgir a partir da pílula também, porque depois da pílula os heterossexuais podiam fazer sexo só pelo prazer, igualando a prática heterossexual e homossexual. A pílula propiciou o movimento feminista, o movimento gay, o movimento hippie, a revolução sexual. Portanto, eu acho que essa repressão foi muito forte durante muito tempo e nós estamos no meio de um processo de quebrar com os preconceitos, de quebrar com os tabus, uma busca maior do prazer sem culpa, isso é um processo no qual estamos caminhando e assistindo uma profunda transformação nas mentalidades e vamos ver muito mais daqui há alguns anos. Eu não tenho dúvida de que uma criança que nasça hoje terá relações amorosas completamente diferentes das vividas no momento.
O amor faz com que o indivíduo se sinta menos desamparado, porque nós todos somos profundamente desamparados"
Algumas correntes filosóficas, como o estoicismo, dizem que o amor e paixão fazem grande mal ao homem. A senhora acredita que o problema é o amor ou nós que não sabemos amar?
R: Eu acho que o que faz mal é mesmo o amor romântico! Esse tipo de amor que está na cabeça de todo mundo, ele faz mal porque cria expectativas impossíveis de serem realizadas, como a complementação total, a exclusividade, a eternidade, quer dizer, esse tipo de idealização do par amoroso é que gera sofrimento. Eu acho que a gente não tem ainda um conhecimento, uma vivência para falar do sofrimento causado por um outro tipo de amor, porque o amor romântico está entre a gente faz muito tempo. Na verdade, o amor romântico começou a ser uma possibilidade no casamento a partir do século XIX, e entrou como fenômeno de massa a partir de 1940, quando as pessoas começaram a casar por amor, porque antes ninguém casava por amor, casava-se por interesses econômicos, políticos, etc. Então esse amor romântico é prejudicial mas a maioria das pessoas quando falam em amor, pensam no amor romântico, e elas nem gostam quando você critica, para elas é bom sentir a emoção do amor romântico porque elas não conhecem outro tipo de emoção, fomos condicionadas a desejar essa exaltação que o amor romântico provoca.
O amor e o sexo estão entre as principais causas de um grande sofrimento das pessoas, tirando miséria, tirando doença. As pessoas gastam um tempo enorme de suas vidas sofrendo por amor, com seus medos, fantasias e culpas. A minha intenção ao discutir o amor é contribuir para a mudança das mentalidades, para que as pessoas vivam melhor, com mais prazer. Ainda existe muita repressão com relação ao sexo, ainda existe muito tabu, muito preconceito com as relações amorosas. Por isso defendo idéias mais libertárias.
As pessoas buscam o amor romântico porque foram condicionadas a isso e acreditam que é o único amor"
Por que a senhora acredita que o amor tem tanta importância para as pessoas na sociedade contemporânea?
R: O amor, em um sentido amplo, o amor entre parentes, entre amigos, tem importância porque ele faz com que o indivíduo se sinta menos desamparado, porque nós todos somos profundamente desamparados a partir do momento em que saíamos do útero de nossa mãe, pois no útero temos a total satisfação das nossas necessidades, e quando nascemos somos tomados por um sentimento de falta, de desamparo. Então, você amar e se sentir amado é maravilhoso, porque atenua o seu sentimento de desamparo. Agora o amor romântico é uma outra história, ele é uma construção social cheia de expectativas, por isso eu acho que ele é importante, as pessoas buscam o amor romântico porque elas foram condicionadas a isso e acreditam que é a única forma de amor. Mas no momento em que elas vivenciarem outro amor ele será importante também e talvez até mais do que o amor romântico.
Por que a senhora escolheu se dedicar ao amor enquanto psicanalista?
R: Eu sou psicanalista há 35 anos, durante muitos anos eu atendi em consultório, dei aula na universidade e não trabalhava com essa questão amorosa especificamente, mas eu sempre percebi que isso gera muito sofrimento, as pessoas sofrem demais por conta do amor e das questão sexuais. Há uns 15 anos eu abri uma instituição em que eu podia dar palestras e eu escolhi o tema amor porque eu sempre achei que as pessoas gostariam de discutir isso e foi muito bom porque a procura foi imensa. Então, comecei a me aprofundar nisso, em discutir as questões amorosas, pois para isso você tem que estudar muito, estudar a história das mentalidades, que vai além da história tradicional de datas e nomes, hoje existe uma quantidade enorme de livro sobre as mentalidades, sobre casamento, sobre as relações, sobre o que as pessoas viviam, o que sentiam. Em 1997 lancei meu primeiro livro, A cama na varanda, um best-seller e o primeiro dos meus oito livros, sempre trabalhando com o amor, e quanto mais eu lia, mais eu me apaixonava pelo tema, e hoje acho que a coisa mais interessante que tem é você mergulhar no estudo do amor.
Qual a importância da Internet para o debate amoroso?
R: Uma importância imensa! Porque as pessoas podem falar livremente, se quiserem ficam anônimas e tem uma comunicação instantânea. Então, você escreve no Orkut e na mesma hora alguém entra, já lê o que você escreveu e pode responder. A Internet é fundamental não só para debater o amor, mas para qualquer discussão. Provavelmente até o fim do ano eu estarei lançando dois livros. Um que eu escrevi baseado no que os usuários do meu site declaram, pela interação com esses usuários, o que me deu uma amostragem de como as pessoas estão pensando o amor e o sexo hoje, quer dizer, pelo menos as pessoas de uma determinada faixa social e que se interessam por amor e sexo, pelo que elas participam através do site e respondem.
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